Vir e continuar barro
Eu, ainda, posso me lembrar com detalhes e aromas de minha
tia do Paraguai. O nome dela era Lena, mas a certidão de nascimento e os outros
a chamavam por Madalena- sempre achei isso muito estranho. Era ela uma moça bem
dada, se tratava com todos homens da rua. Diziam que ela fazia de tudo...
talvez essa caridade viesse das horas e horas passadas na igreja pedindo ao
menino Jesus que a tirasse daquela vida barrenta.
Era lavadeira
porque tinha cheiro de amaciante. Nascera com aquele cheiro. Cheiro da casa de
dezenas de gerações... todas nascidas em casa.. todas oriundas da alfazema ou
lavanda. Embora não fosse muito de falar, quando o fazia entregava seu ofício
já nas primeiras sílabas. A voz era macia. Para mim, uma maciez confortante de
tia Lena, para o resto... a doçura, textura, a entrega de Madalena.
Certa
vez quando ela voltava da casa do seu Olavo, com duas chicórias em meio aos
braços fortes de lavadeira, uma galinha magra na mão esquerda e meu litro de
leite seguro na mão direita, os homens cambaleantes do bar a tratavam por nomes
pouco amaciados, sem nenhum cheiro de lavanda ou alfazema... e a coitadinha
apressava o passo e corria como mãe e suplicava ao Menino o perdão e sentia
culpa e sentia náusea e caiu. Caiu perdoada
Em uma vez certa, contaram-me o porquê de a chamarem de Madalena. Motivo
era simples: titia havia nascido com cheiro de pão e água. Nasceu na casa de
pobres... cheirava o pão que dezenas de gerações haviam comido...todas nascidas
em casa de barro embora todas vindas do barro... mesmo barro das ricas beatas
que dormiam na missa enquanto titia calejava seus dedos com o terço velho
herdado de minha mãe.
Quando minha vida foi ganhando gênero e
perdendo o meu roteiro, descobriram em mim uma mulher encoberta pela criança. Tive que
apressar essa descoberta depois que minha tia morreu e foi viver junto a minha
mãe. Com o amanhecer de meus traços de mulher, os cambaleantes das esquinas já
se sentiam à vontade para me chamarem de Madaleninha e soltarem seus fétidos
desejos em minha direção.
Aceitava lavar as roupas das senhoras da vila,
aceitava ter cheiro de lavanda, aceitava ter a varanda como meu único
refúgio... ver as crianças brincando, os carros passando, as mulatas sambando..
aceitava ter vindo e viver no barro.. só não me conformava com a hipótese de me
tratar com os homens da rua.
Nascera o filho de minha
irmã doente... e minha irmã foi viver junto à titia e mamãe...
Com braços vazios,
mãos vazias e braços fortes de lavadeira e uma criança em casa chorando por
fome, desci aquela rua com pernas apressadas e olhos inundados e apegada nas orações e tomada pela náusea...os
homens com idade de avô se alimentavam pelos olhos... se satisfaziam pelo meu
desespero...
-Olá, avô!
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Com o litro de leite na mão direita, só pedia ao Menino para
me levar junto à mamãe e titia... só pedia que me trouxesse vida...