quinta-feira, 15 de novembro de 2012

                             Vir e continuar barro


Eu, ainda, posso me lembrar com detalhes e aromas de minha tia do Paraguai. O nome dela era Lena, mas a certidão de nascimento e os outros a chamavam por Madalena- sempre achei isso muito estranho. Era ela uma moça bem dada, se tratava com todos homens da rua. Diziam que ela fazia de tudo... talvez essa caridade viesse das horas e horas passadas na igreja pedindo ao menino Jesus que a tirasse daquela vida barrenta.

    Era lavadeira porque tinha cheiro de amaciante. Nascera com aquele cheiro. Cheiro da casa de dezenas de gerações... todas nascidas em casa.. todas oriundas da alfazema ou lavanda. Embora não fosse muito de falar, quando o fazia entregava seu ofício já nas primeiras sílabas. A voz era macia. Para mim, uma maciez confortante de tia Lena, para o resto... a doçura, textura, a entrega de Madalena.

    Certa vez quando ela voltava da casa do seu Olavo, com duas chicórias em meio aos braços fortes de lavadeira, uma galinha magra na mão esquerda e meu litro de leite seguro na mão direita, os homens cambaleantes do bar a tratavam por nomes pouco amaciados, sem nenhum cheiro de lavanda ou alfazema... e a coitadinha apressava o passo e corria como mãe e suplicava ao Menino o perdão e sentia culpa e sentia náusea e caiu. Caiu perdoada

   Em uma vez certa, contaram-me  o porquê de a chamarem de Madalena. Motivo era simples: titia havia nascido com cheiro de pão e água. Nasceu na casa de pobres... cheirava o pão que dezenas de gerações haviam comido...todas nascidas em casa de barro embora todas vindas do barro... mesmo barro das ricas beatas que dormiam na missa enquanto titia calejava seus dedos com o terço velho herdado de minha mãe.

   Quando minha vida foi ganhando gênero e perdendo o meu roteiro, descobriram em mim uma  mulher encoberta pela criança. Tive que apressar essa descoberta depois que minha tia morreu e foi viver junto a minha mãe. Com o amanhecer de meus traços de mulher, os cambaleantes das esquinas já se sentiam à vontade para me chamarem de Madaleninha e soltarem seus fétidos desejos em minha direção.

   Aceitava lavar as roupas das senhoras da vila, aceitava ter cheiro de lavanda, aceitava ter a varanda como meu único refúgio... ver as crianças brincando, os carros passando, as mulatas sambando.. aceitava ter vindo e viver no barro.. só não me conformava com a hipótese de me tratar com os homens da rua.
  Nascera o filho de minha irmã doente... e minha irmã foi viver junto à titia e mamãe...

 Com braços vazios, mãos vazias e braços fortes de lavadeira e uma criança em casa chorando por fome, desci aquela rua com pernas apressadas e olhos inundados e  apegada nas orações e tomada pela náusea...os homens com idade de avô se alimentavam pelos olhos... se satisfaziam pelo meu desespero...

-Olá, avô!
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Com o litro de leite na mão direita, só pedia ao Menino para me levar junto à mamãe e titia... só pedia que me trouxesse vida...